Creditos da foto:Catarina Litieri/Aratu On
Antes de chegarmos ao Cine Tupy, que fica na Baixa dos Sapateiros, em Salvador, o motorista de carro por aplicativo avisou: “Só tomem cuidado para não encostar em nada”. Quando entramos no cinema, que ainda estava fechado para o público, vimos que aquele conselho era infundado: estava tudo muito limpinho, com cheiro de desinfetante.
Há 35 anos, o Cine Tupy, aberto há cerca de 60, se tornou um cinema especializado em filmes adultos. Antes disso, quando a Baixa dos Sapateiros ainda era frequentada pela classe média alta e elite de Salvador, o espaço era um cinema comum, que passava de tudo, desde super lançamentos aos filmes que só são exibidos em salas de arte.
Inácio dos Santos, que trabalha como comerciante autônomo na frente do cinema há 25 anos, conta que o movimento por ali caiu. “Já foi bom. Hoje em dia, está fraco. Por causa da pandemia também, né”.
Desde que virou um cinema de filmes adultos, exibidos duas vezes por dia, por R$ 13 o ingresso, o público do Tupy também mudou: a clientela é quase integralmente formada por homens que se identificam como LGBTQIAP+, como ressalta Inácio: “90% é esse público. Vem casal, mas vem mais as pessoas sozinhas. Eles são muito na deles, né. Só pode entrar a partir de 18 anos, se for menor, não entra”.
O comerciante João Lúcio, que também trabalha próximo ao Tupy há 25 anos, conta que o público do local diminuiu junto com o movimento da Baixa dos Sapateiros: hoje, por exemplo, quase todas as lojas funcionam só até às 17h. Daí para a frente, a rua fica deserta. “Para mim, está precisando trocar os empreendedores por outros com uma nova visão. Eu, se tivesse dinheiro, investiria na Baixa dos Sapateiros. O público mudou. Antigamente, era pedestre, e hoje, tem muito carro. Mas, se eu tivesse de abrir uma loja, abriria aqui”.
Por ser um centro comercial efervescente na década de 1950, a Baixa dos Sapateiros também era um polo cultural. Na época, quatro cinemas funcionavam na região: Tupy, Jandaia, Pax e Aliança. Com a construção e popularização dos shopping centers na cidade, que inauguraram os cinemas de shopping, os cinemas de rua começaram a fechar, um por um, num efeito dominó. Menos o Tupy, que foi comprado por uma empresa que viu o nicho dos filmes pornográficos como a única forma de sobreviver. E sobreviveu.
O gerente do Tupy, Vladimir Mônaco, mostra as instalações e explica que a casa já foi muito mais bonita, mas que não está em uma boa fase: ao invés de um carpete, o piso é só cimento mesmo, e as cadeiras da sala são daquelas antigas, não muito confortáveis. Ele não deixa filmar nem fotografar a única sala de projeção do espaço, que tem capacidade para 150 pessoas, por achar que não está preservada o suficiente. Atualmente, como conta Vladimir, a média de público é de 35 pessoas por dia.
“O público era um pouco melhor. A gente está mantendo para ver o que vai acontecer no futuro. O cinema de rua já vem sofrendo esses anos todos, isso em todo o Brasil. Aqui já teve dez funcionários. Hoje, a gente está trabalhando com dois”.
Como o gerente explica, nem todo mundo que vai ao Tupy costuma assistir aos filmes. Na verdade, os títulos nem importam: muitos dos frequentadores vão ali só para beber uma cerveja nas mesinhas de bar de plástico que ficam depois da catraca, e se encontrar com outras pessoas que estão lá com a mesma intenção. Pipoca, não tem. “Tem o clima, né? Ficam aqui, conversam, é aquela coisa. As pessoas se encontram e se resolvem. Senta aqui, toma umas cervejinhas… e pronto”.
Vladimir, que trabalhou em uma cinema de rua em Angola por dez anos, só voltou para o Brasil porque, por lá, eles também decaíram. Hoje, ele não acredita que outras salas do Centro de Salvador, como o Cinema Metha Glauber Rocha, por exemplo, vão resistir por muito mais tempo.
“Não acredito que consiga se manter pelo local. Você tem coragem de sair ali à noite, na Praça Castro Alves? Isso aqui, no passado, era uma coisa fantástica. As pessoas vinham com aqueles chapéus… assim que se abriu os cinemas de shopping, os cinemas de rua foram fechando, todos eles. E, esse aqui, está por ordem de graça”.
PALÁCIO DAS MARAVILHAS
Diferentemente do Tupy, o Jandaia caiu – literalmente. Do cineteatro fundado em 1911, sobrou só o esqueleto de um prédio que, na década de 1960, era considerado o principal cinema da cidade. Ele tinha até um apelido: cheio de vitrais coloridos, fachada em estilo art déco e pé direito alto, o espaço, que tinha capacidade para 400 pessoas, era chamado de Palácio das Maravilhas. Lá, se apresentaram nomes como Carmem Miranda e Dalva de Oliveira, por exemplo. “Era lindo. Pense em uma coisa mais linda do mundo”, diz Vladimir.
Em 1990, ele fechou e, em 2016, o prédio foi doado para o Estado pelo antigo proprietário, Cláudio Valansi, herdeiro de um complexo de cinemas em várias cidades do Brasil. Na ocasião, o governador da Bahia, Rui Costa (PT), falou sobre uma possível restauração do local, que nunca aconteceu. “A Bahia precisa de equipamentos culturais que aproximem a população da arte. Por isso, não podemos deixar um ícone para a nossa cultura, como foi o Cine Jandaia, ser destruído. Nosso objetivo é que o novo centro seja voltado para a promoção de artistas locais”.
Na opinião de Vladmir, os proprietários abriram mão do Jandaia porque, além de necessitar investimentos milionários para recuperá-lo, seria um gasto em vão. Para ele, seja um Palácio das Maravilhas, seja um cinema super tecnológico, o público já não volta a ocupar essa parte da cidade.
“O Jandaia, hoje, pertence ao Governo da Bahia. Tinha que fazer um investimento muito grande. Aí, os proprietários preferiram fazer uma doação para o governo. Se eles tivessem de fazer um investimento lá, não iria ter resultado. Lá dentro, caiu todo. O prédio, hoje, é uma ruína. Tem risco, inclusive, de desabamento”.
Cine Jandaia por dentro / Foto: divulgação/Redes Sociais
Antes da doação, em dezembro de 2015, o prédio centenário foi tombado pelo Instituto do Patrimônio Artístico e Cultural da Bahia (IPAC). No momento, de acordo com a assessoria de comunicação do órgão, que se pronunciou somente por nota, existe um pré-projeto de recuperação, que ainda não tem data prevista para começar.
“O Cine Teatro Jandaia necessita de restauração. Existe um pré-projeto para obras de recuperação e manutenção do patrimônio e, no âmbito do IPAC, está sendo preparado edital público para restauro e gestão do equipamento que, infelizmente, foi retardado pelas inconveniências dos dois anos de pandemia”.
Ainda segundo o IPAC, “o objetivo do Estado é tornar o Cine Teatro Jandaia um espaço multiuso, voltado para a promoção da cultura”.
O diretor do Metha Glauber Rocha, Cláudio Marques, acredita que, além de interesse do poder público, falta também as pessoas voltarem a querer estar nesses espaços. “Qual é o projeto da sociedade? Se você vai a Amsterdam, você tem vários cinemas de rua. Mas, foi um projeto da sociedade, o que a sociedade quer. E, quando falo em sociedade, falo em sociedade civil, políticos, tudo. Você está percebendo isso, que a sociedade está indo para esse caminho? Não. É um desejo da sociedade reformar esse patrimônio histórico?”.
Em setembro de 2021, após o Itaú decidir, repentinamente, retirar o patrocínio do Metha Glauber Rocha, o espaço correu o risco de se juntar ao grupo de cinemas de rua fechados em Salvador. Rapidamente, uma empresa baiana, o Grupo Metha, entrou com o patrocínio, e o cinema conseguiu continuar. “Foi extremamente importante e vital para a gente conseguir continuar funcionando”.
Quem passa na frente do antigo Jandaia, hoje, encontra um prédio belíssimo, mas abandonado, com janelas quebradas, sem teto e entrada lacrada por muros e grades. Das janelas sem vidro, dá para ver que crescem árvores lá dentro. Perguntando para qualquer pessoa da região, é fácil descobrir que tem alguém que se intitula o cuidador do local. Em uma das portinhas que fica abaixo do Cine Teatro, tem uma placa com um nome e um número de telefone.
Ligando, o homem diz que está encarregado de cuidar do espaço por ordem dos proprietários. Não do governo, mas dos proprietários antigos, como se a estrutura ainda não fosse um prédio do Estado, e sim um local privado. Quem o conhece, comenta: “Os proprietários deixaram ele como se estivesse tomando conta. Mas, eles entregaram para o governo, e ele está ali, escondidinho”.
A reportagem do Aratu On quis entrar, mas o IPAC não nos deu acesso. Quando falamos com esse outro cuidador, ele cobrou o que seria um dos ingressos de cinema mais caros da cidade, R$ 150, justificando que era para ajudar a manter o espaço. Não entramos.