*Paulo Sergio João
O Senado Federal derrotou na quarta-feira (1º/9) a proposta do governo federal de introduzir a reforma trabalhista da MP 1045/21, que teria como finalidade o programa da preservação do emprego e da atividade econômica, com acréscimos de modelos de relação de trabalho de resultados benéficos duvidosos. Desse modo, com alívio, ficamos com o que já temos em legislação trabalhista e não vamos suportar novos solavancos e remendos nas relações trabalhistas, com instauração de um campo de litigiosidade sem fim.
Todavia, o momento merece reflexão para a preservação das instituições democráticas e a garantia constitucional.
A origem do Direito do Trabalho como forma de proteção de empregados contra o poder econômico do empregador parece ter ficado no passado, muito embora inegável que em momentos de crise de desemprego há sensível fragilização nas escolhas do tipo de trabalho e seu conteúdo jurídico. É claro, entretanto, que houve um entrincheiramento de trabalhadores e de empregadores que se enfrentam no avanço de direitos ou na preservação da propriedade. Segundo Lyon-Caen (“Le droit du travail. Une technique reversible”, Dalloz, 1995), foi-se o tempo em que o Direito do Trabalho tinha por finalidade proteger o empregado, subordinado, em situação de acentuada desigualdade no contrato de trabalho. Segundo o autor, a proteção foi substituída pela flexibilização com a finalidade de favorecer o emprego.
A legislação trabalhista brasileira tem na Constituição Federal sua base de garantias dos direitos aos trabalhadores (artigo 7º), complementada por leis ordinárias e, especialmente, por negociações coletivas de trabalho cuja finalidade essencial é a redução de desigualdades e a busca da melhoria das condições sociais dos representados. Nesse sentido, todo o arcabouço legal destinado ao campo do trabalho de empregados considera barreiras de proteção aos empregados e legitimou a atuação de trabalhadores por meio de entidades sindicais legítimas, condutoras de conquistas e de transformações de direitos, respeitando sempre os princípios constitucionais.
O professor Tercio Sampaio Ferraz (“A desigualdade econômica e a isonomia: uma reflexão sobre os perfis das desigualdades”. In Rev. Direito Adm., Rio de Janeiro, v. 279, n. 1, p. 31-49, jan./abr. 2020) observa que:
“A Constituição Federal tem na igualdade um de seus núcleos basilares. A igualdade tem um sentido superlativo, quando se percebe seu reconhecimento (artigo 5º) em termos de isonomia (igualdade perante a lei) e de sua inviolabilidade como direito: todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, e a todos se garante a inviolabilidade do direito à igualdade”.
E sobre a desigualdade econômica assevera que:
“Em certos casos, a percepção da diferença é tratada com rigor: (artigo 7º-XXXIII) proibição de trabalho noturno, perigoso ou insalubre a menores de 18 e de qualquer trabalho a menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a partir de 14 anos. E, nessa linha (artigo 7º-XXX), a proibição de diferença de salários, de exercício de funções e de critério de admissão por motivo de sexo, idade, cor ou estado civil. Em outros, é percebida como objetivo. No artigo 3º-III, fala-se em erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais, vale dizer, situações que existem e que devem ser eliminadas (erradicar) ou diminuídas ao máximo possível (reduzir). Na mesma linha (artigo 170-VII), a redução das desigualdades regionais e sociais como princípio da ordem econômica”.
Na expressão do professor um dos problemas cruciais da atualidade é o “jogo” entre igualdade de direito como direito fundamental e a desigualdade como fato constatada e denunciada.
Relevante, no quadro da exclusão social gerada pela crise atual, a reflexão do professor Tércio sobre a compreensão da configuração do perfil da igualdade/desigualdade econômica que, segundo ele, não é tarefa simples e, fazendo uma reflexão extraída do livro de Stiglitz — “The price of inequality” (Londres: Penguin, 2013).
“Países ao redor do mundo, diz ele (p. 4), oferecem exemplos assustadores do que acontece às sociedades, quando elas alcançam um nível de desigualdade para o qual se movem. O quadro não é bom: são países em que os ricos vivem em comunidades muradas, à espera de hordas de trabalhadores com renda abaixo da sobrevivência; sistemas políticos instáveis em que promessas populistas às massas de uma vida melhor desabam em frustrações. E, em tudo, talvez o mais importante, a ausência de esperança, pois, nesses países, os pobres sabem que seus propósitos de emergir da pobreza apontam para um longo caminho de realização minúscula”.
Os problemas com desigualdades sociais, como se observou, sempre foram a tônica da sociedade capitalista e, nestes momentos, presenciamos tonalidades crescentes, uma marginalização ostensiva de trabalhadores e a miséria que bate na porta de todos e avança de modo incontrolável. Diante de tais fatos não é razoável que a solução venha exclusivamente pela via legal, sem qualquer participação de grupos representativos responsáveis e capazes de produzir uma transformação segura e orgânica.
Em geral, as organizações de trabalhadores do setor econômico ficam à espera de iniciativas do Estado para encaminhamento de leis que, todavia, quando aprovadas sofrem a crise de legitimidade política sendo rejeitadas na sociedade.
As soluções para o enfrentamento da crise interessam a todos. No campo das relações trabalhistas sempre fomos capazes de organizar entidades representativas dos diferentes setores da sociedade, sindicatos, centrais sindicais. Talvez tenha chegado o momento de abandonar as trincheiras e caminhar para uma grande concertação social entre as forças produtivas e econômicas, com maior integração e responsabilidade programáticas capazes de eliminar o fantasma do medo de ameaças pixotescas à democracia!
*Paulo Sergio João é advogado e professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Fundação Getulio Vargas.