A cada minuto, uma pessoa sofre abuso sexual no Brasil. Não bastasse a dor que esses episódios causam, a ampla maioria das vítimas ainda enfrenta barreiras devido ao desconhecimento sobre a Lei 12.845/2013 e à resistência dos serviços públicos de saúde no cumprimento desse dispositivo, que garante o direito à assistência emergencial, integral e multidisciplinar após as agressões. Para que todos estejam cientes do que a legislação estabelece, o Ministério Público Federal, a Associação Brasileira de Agências de Publicidade (Abap) e a agência Y&R lançaram nesta quarta-feira (7) a campanha “Lei do Minuto Seguinte”.
A iniciativa é composta por vídeos, peças gráficas e ações de comunicação digital cujo teor baseia-se na premissa da lei: a palavra da vítima é o suficiente. Cabe a todos os hospitais integrantes do SUS prestar atendimento humanizado e imediato às pessoas que os procurem relatando ter sido alvo de qualquer ato sexual não consentido, independentemente da apresentação de boletim de ocorrência ou de outros documentos que comprovem o abuso sofrido. Além de agilizar a assistência, a legislação busca evitar a revitimização, isto é, o reforço do trauma por descaso ou omissão dos profissionais da rede pública de saúde.
“É preciso tornar conhecida essa lei, que não é nova. A falta de informação é um problema tanto para as vítimas, que se encontram em uma situação dramática e acham que só podem recorrer à polícia, quanto em relação aos profissionais do SUS. Ao procurarem unidades públicas de saúde após sofrerem violência sexual, muitas pessoas deixam de receber o tratamento adequado por causa da falta de conhecimento desses profissionais sobre o que diz a lei”, destacou o procurador regional substituto dos Direitos do Cidadão em São Paulo, Pedro Antonio de Oliveira Machado, durante o lançamento da campanha na sede do MPF em São Paulo.
“Além disso, é preciso lembrar que esse drama pode atingir qualquer um, pode bater à nossa porta, inclusive vitimando pessoas próximas de nosso círculo familiar e de amizade, adultos ou crianças, de modo que devemos meditar: como gostaríamos que alguém próximo a nós fosse atendido?”, concluiu o procurador.
As garantias que a Lei 12.845/13 trouxe não se limitam ao diagnóstico e ao tratamento emergencial de lesões causadas pelo agressor. As vítimas devem ter acesso a um atendimento completo que inclui o amparo médico, psicológico e social, a administração de medicamentos contra gravidez e doenças sexualmente transmissíveis, a coleta de material para a realização do exame de HIV, a facilitação do registro da ocorrência e o fornecimento de orientações sobre seus direitos legais e os serviços sanitários disponíveis.
Minuto seguinte – “Desde o início da criação da campanha, tínhamos muito claras algumas necessidades, entre elas a de batizar a lei, pois não podíamos correr o risco de que ela fosse chamada de uma maneira errada”, afirmou Gal Barradas, vice-presidente da Abap, em referência ao surgimento de nomes pejorativos que pudessem estigmatizar a legislação. “Tivemos dois objetivos: desenvolver uma campanha didática e informativa e fazer com que ela traga um senso de urgência”, completou Laura Esteves, diretora de criação da Y&R e responsável pelo desenvolvimento das peças.
O nome “Lei do Minuto Seguinte” remete não só a essa urgência, mas também à projeção que o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) fez a partir das estatísticas de abuso sexual no país. Em 2016, 49,5 mil casos de estupro foram registrados no Brasil. Estima-se, no entanto, que esse número represente apenas 10% de todos os crimes desse tipo efetivamente cometidos, já que a maior parte das vítimas deixa de notificar as autoridades sobre as ocorrências. A partir desses dados, conclui-se que os casos de violência sexual no país possam chegar a 500 mil por ano, praticamente um a cada minuto.
“A gente luta contra o tempo. Quando entramos com a medicação no prazo correto, de até 72 horas, temos eficácia de praticamente 100%. Quanto antes é usada, maior a eficácia”, alertou o ginecologista André Malavasi, diretor do setor de ginecologia do hospital estadual Pérola Byington, um dos centros de referência na assistência à mulher. “Quando falamos de saúde pública, falamos de equidade. O desafio hoje é aumentar a equidade, reduzir a assimetria, fazer com que todos tenham o melhor atendimento no menor tempo possível.”
A campanha – Entre as peças que integram o kit da campanha, estão um vídeo de 60 segundos e banners para veiculação nos principais portais de internet. Materiais para mídia em mobiliário urbano, como paradas de ônibus, também foram desenvolvidos e cumprirão uma dupla função: instalados em pontos de maior incidência de casos de violência sexual, eles não só transmitirão as informações sobre a lei, mas também iluminarão os locais, contribuindo para a prevenção de ataques no período noturno. Veja um dos vídeos da campanha aqui.
A população poderá manifestar seu apoio à campanha com a hashtag #leidominutoseguinte nas redes sociais. As iniciativas digitais incluem também a colaboração de influenciadores para a divulgação do conteúdo e uma ação inédita do Facebook no país: a disponibilização do primeiro cover brasileiro (tema para foto de perfil) relacionado a uma ação social. Por fim, no Dia Internacional da Não-Violência contra a Mulher (25 de novembro), será lançada a “estátua dos mil rostos”, uma escultura itinerante de corpo feminino cujo rosto trará uma tela eletrônica com imagens de mulheres se alternando a cada minuto.
Todas as informações e orientações às vítimas podem ser acessadas no site www.leidominutoseguinte.mpf.
A campanha foi desenvolvida inteiramente com base no trabalho voluntário de centenas de profissionais, entre eles publicitários, fotógrafos, cinegrafistas e representantes de mídias. Veja a lista de apoiadores e a ficha técnica da campanha.
Inquérito – A campanha é resultado de um inquérito civil que a Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (órgão do MPF em São Paulo) conduz desde 2016 para investigar as deficiências do atendimento na rede pública de saúde em casos de violência sexual. A má qualidade do auxílio prestado no SUS e a falta de informações claras sobre a assistência médica disponível são os principais problemas identificados, especialmente quando o abuso resulta em gravidez.
Durante a tramitação do procedimento, o procurador Pedro Antonio de Oliveira Machado recomendou a diversos órgãos públicos de saúde que aperfeiçoassem a assistência às mulheres. A Procuradoria exigiu também maior publicidade às informações sobre o que as vítimas deveriam fazer imediatamente após os episódios de violência sexual e a quais unidades de saúde poderiam recorrer para receber as orientações e os cuidados emergenciais.
Porém, pouca coisa mudou nos últimos dois anos, apesar de as autoridades de saúde alegarem ter tomado providências para melhorar o atendimento. Sem o devido amparo no sistema público, as mulheres, sobretudo aquelas em situação de vulnerabilidade econômica, acabam não tendo acesso à medicação para profilaxia de DSTs e da gravidez dentro do prazo de 72 horas, muitas vezes contraindo doenças graves e tendo que se sujeitar a métodos clandestinos de aborto. Realizados em condições precárias, esses procedimentos podem resultar em complicações ou, até mesmo, na morte das pacientes.