Ataques de hackers no aplicativo zoom, durante a audiência pública virtual da Comissão Especial de Promoção da Igualdade do Legislativo baiano, na manhã desta sexta-feira (7), não intimidaram as lideranças religiosas de matriz africana que celebravam os 132 anos do Bembé do Mercado, manifestação centenária de Santo Amaro, tombada como Patrimônio Imaterial da Bahia pelo Ipac (2012) e Patrimônio Cultural do Brasil pelo Iphan (2019).
A invasão, como bem definiu a proponente da audiência, deputada Olívia Santana (PC do B), ratificou o símbolo de resistência que é a manifestação do candomblé de rua do Bembé do Mercado. A conexão foi restabelecida pela equipe técnica da ALBA em todas as tentativas de derrubar a sessão remota e todos os convidados retornaram à sala, com êxito. “Nós vencemos, conseguimos chegar até o final dessa celebração, reunindo esse coletivo de terreiros e cumprindo a nossa programação”, disse a parlamentar, que solicitará uma investigação rigorosa para identificar e punir os invasores.
Por conta da pandemia do coronavírus, a festa, que acontece todos os anos, no dia 13 de maio, na cidade do Recôncavo baiano, mais uma vez não será realizada. Na abertura da audiência pública, a presidente do colegiado, deputada Fátima Nunes (PT), reiterou a importância de, mesmo de forma virtual, promover a “celebração do passado, analisar o presente e fazer a indicação do futuro”. Ela saudou os presentes, passando a condução dos trabalhos à deputada proponente da sessão.
Para Olívia Santana, o Bembé do Mercado é um ato político, religioso e cultural: “Essa cerimônia – que surgiu espontaneamente dos terreiros para fazer o candomblé de rua, celebrando uma liberdade que, infelizmente, não foi plena – veio um ano depois da Lei Áurea, de 1888, que declarou oficialmente extinta a escravidão. Para nós, do movimento antirracista, o 13 de maio é um dia nacional de denúncia contra o racismo. Mas Santo Amaro renova, fazendo dessa experiência dos escravizados libertos um gesto no sentido de celebrar esse passo que também foi importante em direção à liberdade”.
Durante a audiência, diversas falas de ativistas e lideranças religiosas de matriz africana reforçaram o legado deixado por João de Obá, o escravo alforriado que forjou o Bembé do Mercado, no dia 13 de maio de 1889, celebrando a liberdade de sua gente. Hoje, o evento agrega mais de 100 terreiros, dos quais 42 diretamente na realização do chamado “Xirê de Rua”. Um vídeo foi exibido também, mostrando a preparação da festa, que se inicia dentro de um terreiro, com oferendas aos orixás e à natureza. É destacado como ápice, nos três dias de evento, a noite de sábado para domingo, quando o presente chega ao mercado; no último dia, domingo, há um cortejo na cidade até a praia de Itapema, onde acontece a entrega do presente à Iemanjá.
Uma das falas mais fortes no vídeo é de Pai Pote, um dos organizadores do Bembé, babalorixá do terreiro Ilê Axé Oju Onirê: “Tudo para o povo negro é difícil, principalmente o povo de candomblé e de santo. A nossa religião é discriminada por muitos anos. Até hoje, no século XXI, é difícil pra nossa gente”. Presente na audiência, o religioso expressou sua gratidão pela articulação que permitiu reunir, virtualmente, os terreiros e lideranças, sobretudo os do Recôncavo.
Pesquisadora da tradição do Bembé, a professora Ana Rita Araújo Machado, da Uneb, a define como uma festa transgressora, uma construção social e uma grande celebração à vida, que traz um conjunto de significados de luta e de sobrevivência da população negra pós-abolição. Reforçando a fala da professora, a secretária estadual de Políticas para as Mulheres, Julieta Palmeira, reverenciou o evento como um exercício de liberdade e cidadania: “Democracia é ter xirê na rua”.
Diante dos ataques de hackers à transmissão da audiência pública, a secretária estadual de Cultura, Arany Santana, concluiu como o Bembé do Mercado é atual: “Essa celebração é um grito contra a discriminação, contra essas agressões, o fascismo e a intolerância religiosa”. Já Fabya Reis, da pasta estadual de Promoção da Igualdade, definiu a rede de apoio contra o racismo e a intolerância religiosa como ‘um grande quilombo’, e relembrou o poeta e professor Jorge Portugal nos versos de 14 de Maio, em parceria com o cantor Lazzo Matumbi: “Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu / A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa / Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu”.
Iyálaxé Juçara Lopes, coordenadora das Mulheres de Axé do Recôncavo, exaltou a participação feminina na audiência, de diversos locais do país, além da força da representatividade em espaços de poder, como Legislativo e Executivo. Para ela, é preciso ressignificar o Bembé do Mercado através das redes sociais, promovendo a inclusão digital das lideranças religiosas. “Vamos organizar uma oficina nas casas de mulheres de axé”, provocou a religiosa.
Convidado, o ator Antonio Pitanga saudou o evento como uma ciranda do chamamento e da luz. “Eu fico muito emocionado com esse chamamento de Santo Amaro, não só para a Bahia, mas para o Brasil, da importância da nossa religiosidade”, disse o artista. Quem também prestigiou a sessão foi a cantora e compositora Leci Brandão, que é deputada estadual pelo PC do B em São Paulo. Ela falou de ancestralidade, relembrou de suas raízes na Bahia e prometeu, assim que a pandemia arrefecer e a festa em Santo Amaro retomar, visitar de perto o Bembé do Mercado, e toda magia da sua “resistência na celebração”.
O evento foi encerrado com cantigas de candomblé na voz de Mãe Joselita, da Irmandade da Boa Morte, de Cachoeira. Também participaram da comemoração pelo 132º aniversário do Bembé a deputada Maria del Carmen (PT); a subprocuradora-geral do Ministério Público do Trabalho, Dra. Edelamare Melo; ekedi Patricia Pinheiro, diretora do Iabepe África 900; padre Lázaro Muniz; o sociólogo Ailton Ferreira; e o ogã Marcos Rezende, coordenador-geral do Coletivo de Entidades Negras (CEN).