(FOLHAPRESS) – O registro de armas novas pela Polícia Federal cresceu mais nos estados nos quais o presidente Jair Bolsonaro (PL) venceu no segundo turno das eleições de 2018.
Entre 2018 e 2021, o número de novas armas registradas passou de 39 mil para 163,7 mil nas 16 unidades da federação que preferiram Bolsonaro, uma alta de 320%.
Já nos 11 estados nos quais Fernando Haddad (PT) venceu no segundo turno, o aumento foi de 223%, saindo de 12 mil para 38,8 mil.
A disparidade fica mais evidente quando se analisa o registro de novas armas no primeiro semestre de 2022 em relação à população de cada estado.
A população dos locais que elegeram Bolsonaro em 2018 soma 145,3 milhões de habitantes, de acordo com a projeção para 2021 do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o que significa que em 2022 houve uma arma nova para cada 1.700 pessoas.
Já entre os 68 milhões de habitantes dos estados nos quais Haddad venceu, a relação é de um novo registro para cada 3.600 pessoas.
Ou seja, há duas vezes mais armas por pessoa sendo registradas em 2022 nos estados nos quais Bolsonaro venceu em 2018.
O atual presidente foi ganhador do segundo turno daquelas eleições em Acre, Amazonas, Amapá, Distrito Federal, Espírito Santo, Goiás, Minas Gerais, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Paraná, Rio de Janeiro, Rondônia, Roraima, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e São Paulo.
Haddad ganhou em Alagoas, Bahia, Ceará, Maranhão, Pará, Paraíba, Pernambuco, Piauí, Rio Grande do Norte, Sergipe e Tocantins.
O número de armas novas registradas foi obtido pelo jornal Folha de S.Paulo junto à PF a partir de um pedido de LAI (Lei de Acesso à Informação). Já os dados sobre os locais onde cada candidato venceu foram fornecidos pelo TSE (Tribunal Superior Eleitoral).
Um mote da gestão de Bolsonaro tem sido a facilitação da compra de armas pela população. O governo federal já editou 19 decretos, 17 portarias, duas resoluções, três instruções normativas e dois projetos de lei que flexibilizam as regras para ter acesso a armas e munições.
Na sua gestão, além de estimular o cidadão comum a se armar, Bolsonaro deu acesso à população a calibres mais poderosos.
Em agosto do ano passado, no momento em que enfrentava uma crise institucional, o presidente disse a apoiadores em frente ao Palácio da Alvorada que defendia que todos pudessem ter um fuzil. “Tem que todo mundo comprar fuzil, pô. Povo armado jamais será escravizado.”
No Distrito Federal, Bolsonaro venceu nos dois turnos da eleição e houve um salto no crescimento de novas armas. A Polícia Federal já liberou mais armas em 2022 que em 2021 nessa unidade da federação. Foram 11.462 contra 9.298 do ano anterior.
O ex-secretário de Cultura Mario Frias conseguiu autorização com a Polícia Federal no DF para ter quatro armas, sob uma alegada necessidade para defesa pessoal. É o número máximo permitido pela corporação para um cidadão. A primeira foi em 2020, a segunda em 2021 e as outras duas em 2022.
Questionado sobre a necessidade de comprar quatro armas para defesa pessoal, Frias disse em nota à Folha de S.Paulo que só não adquiriu outras “porque não tinha dinheiro para comprar mais 20”.
“Acho natural que onde Bolsonaro tenha mais eleitores tenha maior número de novas armas. Arma de fogo tem sido o único discurso do presidente, essas pessoas estão cumprindo o comando dado pelo líder delas”, avalia Ivan Marques, advogado e membro do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A servidora pública Gabriela Martinelli Coelho Fernandes, 47, tirou a posse de arma pela PF em 2019. Decidiu que deveria adquirir uma arma para defesa pessoal porque mora em um sítio, em Santa Maria de Jetibá (ES), com três filhos, e o marido fica dias fora de casa a trabalho.
“Eu espero nunca precisar usar, eu sou uma pessoa muito da paz. Só que como eu moro num lugar afastado da cidade, caso aconteça alguma coisa, a polícia deve demorar a chegar. Dessa forma, me sinto mais segura e protegida em casa”, disse.
Ela afirmou que nunca teve contato com armas antes, mas que viu essa necessidade pela condição que vive hoje. No entanto, é contra armar toda a população por ser um item perigoso, dependendo de quem o adquire.
Fernandes acrescenta que o processo na Polícia Federal não é difícil para quem cumpre todos os requisitos. Precisou do psicotécnico e do teste de tiro, além de documentos que comprovaram não possuir antecedentes criminais.
É pela PF que o cidadão comum pode ter a posse de arma para defesa pessoal. No Sinarm (Sistema Nacional de Armas) também ficam cadastradas armas da Polícia Civil, guarda municipal, caçador de subsistência, servidor público e lojas de armas.
No Brasil as armas são liberadas pela PF e pelo Exército. Na Força, ficam registradas armas de CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), das Forças Armadas e o armamento particular de militares, incluindo policiais e bombeiros.
O porte de arma, por sua vez, é concedido pela Polícia Federal, sendo restrito a determinados grupos, como profissionais de segurança pública, membros das Forças Armadas, policiais e agentes de segurança privada.
O que tem ocorrido é que aos CACs foi permitido carregar a arma no trajeto entre sua casa e o local de prática (clube de tiro ou local de caça), sem restrição de rota ou de horário, o que, segundo especialistas, significa autorização para o porte, dada a subjetividade da regra.
Além disso, tem ocorrido a aprovação de projetos apresentados por parlamentares em assembleias estaduais e até em câmaras municipais que tentam garantir ao CAC o direito de andar armado, justificando que essa seria uma atividade de alto risco, embora esse seja assunto de competência exclusivamente federal.
As mudanças de regras permitiram uma explosão no registro de novas armas, mas o mesmo não aconteceu com o indeferimento de pedidos. Em 2019, foram 52,3 mil pedidos deferidos e somente 1.200 indeferidos. Ou seja, para cada pedido indeferido, outros 42 eram aprovados
Em 2020, os pedidos aprovados foram de 143 mil, quase três vezes mais do que no ano anterior, e os indeferidos caíram para 781. A relação passou então para 183 pedidos aprovados para cada um negado.
No ano seguinte, cresceram tanto o número de pedidos aprovados, que foi de 170,7 mil, quanto o de pedidos negados, que foram de mil. A relação ficou em 164 pedidos aprovados para cada um negado.
Natália Pollachi, gerente de projetos do Instituto Sou da Paz, diz que o aumento de armas está diretamente ligado a dois aspectos: facilitação de normas e discurso de incentivo à compra de armamento. Entretanto, o aumento da fiscalização não segue o mesmo ritmo do número de armas liberadas por PF e Exército.
“A gente não vê anúncio de investimento em fiscalização em nenhum dos órgãos. No caso do Exército isso ficou ainda mais claro quando houve a revogação de três portarias que aumentariam o controle de armas, que só foram reestabelecidas às portas de um julgamento do STF.”
Isabel Figueiredo, conselheira do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, acrescenta que as normas editadas pelo governo Bolsonaro fragilizam o controle de armas e munições.
“A gente não está ampliando a capacidade institucional dos órgãos de controle mesmo com o aumento da liberação de armas”, avalia.
Para a pesquisadora, o Brasil não está se tornando armamentista como um todo e, sim, parte do eleitorado de Bolsonaro, que segue seu discurso.
No final de maio, pesquisa Datafolha mostrou que a maioria dos brasileiros rejeita as ideias do presidente sobre armas. Segundo pesquisa, 7 em cada 10 entrevistados, em média, se contrapõem a políticas que favoreçam o armamento da população.