(FOLHAPRESS) – Movimentos e partidos de esquerda decidiram vetar o mote da prisão de Jair Bolsonaro (PL) como bandeira de uma manifestação que foi marcada para 23 de março, quase um mês depois do ato que reuniu milhares de apoiadores do ex-presidente na avenida Paulista no último domingo (25).
A proposta de defender a prisão foi discutida em reuniões das frentes Brasil Popular e Povo sem Medo, que agregam organizações alinhadas ao presidente Lula (PT), mas acabou rejeitada pela maioria.
A definição em consenso foi a de pregar o lema “sem anistia para golpista” e lembrar os 60 anos do golpe militar de 1964, difundindo a mensagem de que novas tentativas de ruptura devem ser combatidas.
Líderes da mobilização se irritaram com materiais que circularam dando conta de que o pedido de prisão seria um dos chamarizes do ato. O argumento que prevaleceu nos debates fechados foi o de que o direito de defesa e o devido processo legal têm que ser resguardados, assim como se reivindicava para Lula.
Articuladores contrários à ideia lembraram que, quando o presidente estava no alvo da Operação Lava Jato e preso, o chamado campo progressista defendeu majoritariamente o cumprimento da pena de prisão somente após quando não houvesse mais recursos.
Bolsonaro é investigado sob suspeita de comandar uma trama golpista para reverter a eleição vencida pelo petista em 2022 -e ainda não foi nem sequer denunciado formalmente.
A manifestação da esquerda será em defesa da democracia e de punição para aqueles que a Justiça considerar responsáveis pelo levante inconstitucional.
Ela deve se concentrar em São Paulo e Salvador, mas os detalhes ainda estão sendo fechados. A tendência é evitar a avenida Paulista como ponto escolhido na capital paulista, pelo temor de que a comparação com o ato bolsonarista seja desfavorável.
Pessoas envolvidas nas discussões admitem, sob condição de anonimato, que a direita demonstrou manter capacidade de mobilização e afirmam que a presença de Bolsonaro e de aliados de peso funcionou como atrativo para caravanas que saíram de outros estados.
A participação de Lula no evento está sendo cogitada, o que reforçaria a disputa de forças com o bolsonarismo.
“Nós queremos a participação do Lula e que ele ajude a decidir se o melhor é concentrar esforços em Salvador ou em São Paulo”, diz João Paulo Rodrigues, dirigente nacional do MST (Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra). Segundo ele, a manifestação não é uma resposta à dos rivais.
A capital da Bahia foi escolhida como um dos locais prioritários pela força de Lula no Nordeste e pelo fato de o estado ser governado por um aliado, Jerônimo Rodrigues (PT). Organizadores estão medindo a disposição da militância para decidir sobre a realização de atos em mais capitais no mesmo dia.
No caso de São Paulo, outros locais em avaliação são as praças da República e da Sé e os largos da Batata e São Francisco. A escolha dificultaria uma comparação direta do tamanho dos públicos. Caso o ato da esquerda seja pulverizado, a configuração será ainda mais diferente, na ótica dos líderes.
No último domingo, o ato bolsonarista atraiu milhares de pessoas. Ao menos quatro quarteirões da Paulista ficaram superlotados. Havia bolsonaristas, mais espalhados, em cerca de um total de dez quarteirões da avenida.
A manifestação teve 600 mil pessoas na avenida e mais 150 mil nas ruas próximas, segundo o secretário estadual da Segurança Pública, o bolsonarista Guilherme Derrite. Um cálculo de pesquisadores da USP chegou a um número menor, de 185 mil pessoas no total.
O próprio Lula reconheceu em entrevista que o ato foi grande e que “não é possível você negar um fato”. “É só ver a imagem. Como as pessoas chegaram lá ‘é outros 500′”, afirmou o presidente à RedeTV!. Aliados do petista têm dito que empresários e produtores do agronegócio financiaram ônibus para o destino.
De acordo com Rud Rafael, que é coordenador do MTST (Movimento dos Trabalhadores Sem-Teto) e representa o grupo na frente Povo sem Medo, o mote da prisão de Bolsonaro foi excluído da pauta para unificar as entidades que preparam a convocação. A reunião que definiu os temas da data teve a participação de 150 porta-vozes de movimentos, de acordo com Rafael.
“Fizemos o ajuste porque não queremos precipitar uma conclusão das investigações ou nos anteciparmos à Justiça. Nossa defesa é a de que as autoridades possam ir a fundo no que de fato aconteceu”, diz ele, acrescentando que “há fartas provas mostrando a ligação de vários setores com a estratégia golpista”.
O entendimento expresso em conversas privadas é que o apelo por prisão pode ser usado como estratégia de agitação, mas colocá-lo oficialmente como uma demanda neste momento soaria incoerente com o histórico do campo de esquerda no caso de Lula e de outros réus da Lava Jato. O discurso, naquele momento, era o de que a operação instrumentalizou o Judiciário para interferir indevidamente na política.
“O que vamos fazer é, no contexto de aniversário do golpe [militar], lembrar que isso não pode acontecer de novo, nunca mais”, diz o coordenador nacional da CMP (Central de Movimentos Populares), Raimundo Bonfim. “Vamos defender a democracia que foi atacada no ato do Bolsonaro e reforçar que não deve haver perdão para quem tiver culpa no cartório.”
Mobilizadores dizem que, mesmo sem ser um tema oficial, a questão da prisão deve aparecer em cartazes e falas, já que a militância anti-Bolsonaro tem a expectativa de que ele seja condenado. Essa pressão tem aparecido em outros protestos, como no realizado em 8 de janeiro deste ano também na avenida Paulista.
Além do PT, estão envolvidos nas mobilizações de março PC do B, PSOL, PV, Rede, PSB e PDT. O campo de esquerda também lançou um manifesto contra a iniciativa bolsonarista. O Palácio do Planalto avaliou que Bolsonaro mostrou força ao mobilizar aliados e estuda ações para dialogar com esse público.
Além das pautas relacionadas a golpe e democracia, a manifestação se posicionará “contra o genocídio na Palestina”, segundo a versão final da convocação aprovada pelos movimentos. A guerra Israel-Hamas apareceu com destaque no ato bolsonarista, com um posicionamento pró-Israel.
O calendário estabelecido pelas organizações de esquerda prevê ainda manifestações em 8 de março, pelo Dia Internacional da Mulher, e em 14 de março, nos seis anos do assassinato da vereadora Marielle Franco, com cobrança de esclarecimento do caso. O dia 23 seria o capítulo final da chamada “jornada de lutas”.
Simone Nascimento, do MNU (Movimento Negro Unificado), diz que “o avanço da extrema direita se combate com mobilização popular” e rebate críticas feitas na própria esquerda sobre o risco de medir forças com Bolsonaro. “Risco nós correremos se não continuarmos a construir as lutas também nas ruas.”