A explosão de casos da Covid-19 no Brasil com o avanço da variante ômicron voltou a expor lacunas na estratégia nacional de testagem. Clínicas, farmácias e serviços públicos não conseguem atender a procura por diagnóstico.
Especialistas afirmam que há larga subnotificação de casos no Brasil. Os dados oficiais mostram 22 milhões de infecções desde o começo da crise sanitária, ou seja, cerca de 10% da população.
Pesquisa Datafolha publicada neste sábado (15) mostrou que um em cada quatro brasileiros com 16 ou mais anos de idade diz ter sido diagnosticado com Covid desde o início da pandemia. São 42 milhões de pessoas infectadas, quase o dobro do total de casos registrados oficialmente no país.
Estudo da Universidade de Washington projeta número maior: 47% se infectaram no Brasil ao menos uma vez até o dia 3. Seriam cerca de 98 milhões de infectados.
A instituição considera na modelagem diversos pontos, como dados oficiais com cruzamento de dados diários de rede social, deslocamento por geolocalização, taxa de circulação do vírus e tamanho da população.
A epidemiologista Fatima Marinho, que integra a rede de pesquisadores que envia os dados brasileiros à Universidade de Washington, disse que os números oficiais do Brasil são subnotificados por causa da baixa testagem.
“As pessoas não vão fazer teste se a oferta não for ampla. No Brasil, pela baixa testagem somente os casos mais sintomáticos e os mais graves são detectados”, disse Marinho.
“Com a simultaneidade da epidemia da influenza A [H3N2] e da variante ômicron, sem testes disponíveis está difícil distinguir entre uma doença e a outra”, afirmou.
Quase dois anos após o começo da pandemia, o governo Jair Bolsonaro (PL) ainda patina para consolidar uma política de testes. O Ministério da Saúde chegou a negligenciar compras de insumos e deixar vencer exames do “padrão-ouro”, o RT-PCR.
O ministro Marcelo Queiroga (Saúde) aposta na entrega dos testes de antígeno, modelo considerado rápido e eficaz. A ideia é distribuir cerca de 30 milhões de unidades ainda em janeiro.
Os dados levantados pela universidade americana consideram a estimativa de infecções entre pessoas sintomáticas e assintomáticas. Nesse último caso, o paciente pode transmitir o vírus mesmo sem apresentar sinais da doença.
Para o epidemiologista Pedro Hallal, o Brasil não tem uma política de testagem para Covid-19.
“O Brasil faz testes assistencialmente, quase de forma aleatória, sem critério algum. Além disso, há uma desigualdade gigante na testagem. As pessoas pobres têm menos acesso aos testes, embora tenham mais risco de Covid-19”, disse.
O Ministério da Saúde disse, em nota, que já entregou mais de 27 milhões de testes RT-PCR, além de 43 milhões de exames de antígeno.
Entidades médicas como a Abrasco (Associação Brasileira de Saúde Coletiva) cobraram do governo federal e da Anvisa uma política de testagem mais ampla e a permissão da realização do autoteste no Brasil.
Essas organizações apontam que até pacientes com sintomas da Covid podem não estar isolados pela falta de diagnóstico.
Em nota divulgada na quarta-feira (12), a Abramed (Associação Brasileira de Medicina Diagnóstica) alertou para risco de falta insumos necessários nos exames da Covid-19. A entidade recomendou priorização de exames a pacientes “segundo uma escala de gravidade”.
Já os secretários estaduais de Saúde cobraram de Queiroga mais verba para abertura de pontos de testagem em massa. A proposta é de um aporte de R$ 4 por teste enviado pelo ministério a cada estado ou município.
A Anvisa quer liberar o autoteste no começo desta semana. Queiroga sinalizou que o governo não deve entregar exame caseiro no SUS.
“O Brasil é um país muito heterogêneo, de muitos contrastes. A alocação deste recurso para aquisição de autoteste, distribuir para a população em geral, pode não ter resultado da política pública que nós esperamos”, disse o ministro à imprensa na sexta-feira (14).
Os especialistas apontam que o autoteste ajudaria a enfrentar essa nova fase da pandemia. Mas dizem que é preciso planejamento e educação para a população.
A Universidade de Washington também projeta que o pico de infecções neste cenário de prevalência da ômicron no Brasil deve ocorrer em fevereiro.
A estimativa é que o país tenha 2,3 milhões de casos diariamente até 3 de fevereiro, no pior cenário. No entanto, quando a projeção leva em conta a terceira dose para a população e o uso de máscara, esse número é reduzido.
No pior cenário, a pesquisa também projeta 30 mil óbitos pela Covid de 3 de janeiro a 1 de maio.
“Esperamos um pico [de infecções] e casos graves, com estresse das unidades de saúde, mas não um impacto tão grande na mortalidade. Estados com menor cobertura de vacinas vão experimentar maior severidade de casos e maior mortalidade, a vacina está protegendo contra a morte”, disse Marinho.
“A procura por pronto-socorro vai aumentar a ponto de esgotar a capacidade de assistência, a vacina tem segurado a hospitalização na UTI e morte, mas o excesso de doentes nos hospitais poderá tem impacto negativo na taxa de letalidade hospitalar”, afirmou.
O governo chegou a deixar encalhar cerca de 7 milhões de conjuntos incompletos de testes RT-PCR, no fim de 2020, com validade curta.
A Anvisa renovou a vida útil destes exames por mais quatro meses. O governo correu para desovar o estoque e chegou a tentar empurrar um lote de 1 milhão de exames quase vencidos ao Haiti.
Ao assumir o Ministério da Saúde, em março do ano passado, Queiroga prometeu apostar em testes rápidos de antígeno. Apenas em setembro o governo lançou uma campanha para uso em massa destes produtos, prevendo a entrega de 60 milhões de unidades feitas na Fiocruz.
Deste volume, o ministro promete entregar 30 milhões em janeiro de 2022, momento de explosão da procura nos postos de saúde.
Em novembro de 2021, o governo repetiu falhas e estocava 1,2 milhão de exames que venceriam naquele mês. Integrantes da pasta dizem que a maior parte deste lote venceu.
O ministério disse que os exames não venceram, mas não divulgou dados sobre estoque.
Pressionada pela ômicron, a Saúde ainda quer comprar 4 milhões de testes de diagnóstico que detectam tanto a Covid como influenza A e B.
Para Hallal, uma boa política de testagem deveria ter, pelo menos, três camadas.
“A primeira seria assistencial, que identifica precocemente os casos através do serviço de saúde ao rastrear os contatos dos casos confirmados e auxiliar no isolamento dos suspeitos”, disse.
Em segundo lugar, o epidemiologista também defende a testagem por amostragem, para mapear o percentual da população infectada em diferentes momentos da pandemia. Por este caminho é possível identificar os gargalos da testagem assistencial, disse ele.
O terceiro ponto é reforçar a vigilância genômica e identificar quais versões do vírus estão circulando.
“Em cada um dos três pontos o Brasil tem desempenho vexatório. Uma política de testagem demora algum tempo para ser planejada e colocada em prática”, disse Hallal. “Se continuar nesse ritmo, nossa testagem para a ômicron vai começar depois de ter passado a onda da variante”, afirmou.