Durante o trabalho de parto vaginal em uma maternidade pública de Pelotas (RS), a estudante de farmácia Sabrini Ramos de Carvalho, 29, não conseguia ficar deitada. Ela explicou ao médico que sentia dores insuportáveis. “Pedi para ficar em pé ou agachada, posições mais confortáveis. Mas ele disse não, que quem mandava ali era ele.”
A episiotomia tem altas chances de complicações, como sangramento e infecção. A recomendação da OMS (Organização Mundial da Saúde) é que seja feita apenas em situações excepcionais, quando há risco para a mãe ou o bebê e, ainda assim, com aval da parturiente. “Levei muitos pontos, perdi muito sangue. Passei muito tempo na função de chorar, muito frustrada por não ter tido o parto que eu queria.”
A fisioterapeuta Ariane Nogueira, 34, também sofreu uma episiotomia sem ser avisada. “Comecei a sentir muita dor, perguntei o que estava acontecendo e falaram que estavam suturando o corte. Eu não queria ter feito, não informaram que fariam. Depois, os pontos abriram, infeccionaram.” Os sustos continuaram nos dias seguintes. O bebê apresentou icterícia que não melhorava com os banhos de luz na maternidade. Foi a própria Ariane que descobriu a causa: a máquina, com manutenção vencida havia mais de um ano, estava obsoleta. “As pessoas me perguntam se eu quero ter um outro filho, e eu digo que não. Não quero passar nem perto daquilo de novo”, diz.
A bióloga Alinca Peres da Fonseca, 38, saiu da maternidade com uma fratura na costela. Durante o parto do filho caçula, ela foi submetida à manobra de Kristeller, prática que consiste em pressionar a barriga da gestante para empurrar o bebê. O mecanismo, contraindicado pela OMS e pelo Ministério da Saúde, pode comprometer a saúde da mãe e do bebê. No lugar da costela fraturada, Alinca tatuou a palavra “Renascimento”.
“Essa manobra [de Kristeller] considera o corpo da mulher um tubo de pasta de dente. Eu aperto aqui em cima da barriga e o bebê espirra lá embaixo. Há relatos de ruptura de útero, de fígado e de baço, de fratura de costela. O pessoal faz uma força tão descomunal que estoura a mulher”, diz a médica Daphne Rattner, professora da UnB (Universidade de Brasília) e presidente da Rehuna (Rede pela Humanização do Parto e Nascimento).
Além das práticas já descritas, também são frequentes relatos de violência psicológica e agressões verbais contra gestantes no trabalho de parto, como “na hora de fazer não gritou” ou “você não está ajudando, seu bebê pode morrer”.
Em 2014, a OMS reconheceu esse conjunto de abusos sofridos pelas mulheres como violência obstétrica, uma questão de saúde pública e de violação de direitos humanos.
Mas em 2019 o Ministério da Saúde assinou um despacho pedindo que a expressão fosse evitada e, possivelmente, abolida em documentos de políticas públicas. Atendia a uma reivindicação da classe médica, que não aceita o termo.
No entanto, por recomendação do Ministério Público Federal, a pasta recuou da decisão e reconheceu o legítimo direito de as mulheres usarem o termo “violência obstétrica” para relatar maus-tratos, desrespeito e abusos no momento do parto.
A maior pesquisa nacional sobre parto, a Nascer no Brasil, realizada entre 2011 e 2012 com 24 mil mulheres, mostrou que 45% das gestantes que tiveram seus filhos no SUS relatavam maus-tratos. Uma nova edição está em curso para verificar como está a situação dez anos depois.
Mas há sinais de que houve avanços na humanização e assistência ao parto, segundo estudo feito em 2017 e divulgado em abril deste ano pela Fiocruz (Fundação Oswaldo Cruz) e pela Universidade Federal do Maranhão.
O trabalho ouviu 10,5 mil mulheres que tiveram seus bebês em 626 maternidades públicas que fazem parte da Rede Cegonha, estratégia do Ministério da Saúde criada em 2011 com o intuito de melhorar a assistência às mulheres na gestação, no parto e no puerpério.
O índice de episiotomia, por exemplo, caiu de 47%, em 2011, para 27%, em 2017. O da manobra de Kristeller, de 56% para 15%. E a taxa de mulheres que tiveram o direito ao acompanhante no parto passou de 30% para 85%.
O mesmo estudo mostra, porém, que ainda há muito o que avançar. Por exemplo, apenas um quinto das mulheres teve acesso a analgésico no parto. Cerca de 30% das maternidades oferecem uma atenção considerada inadequada à gestante e ao bebê. Dois terços das instituições (66,2%) têm condições estruturais precárias.
Para a médica Simone Diniz, professora da Faculdade de Saúde Pública da USP, o aumento da presença do acompanhante durante o parto tem sido fundamental na redução da violência obstétrica. “O acompanhante é uma testemunha. Ele tem um efeito mágico em reduzir formas de abuso verbal, de constrangimento de natureza sexual do tipo ‘na hora de fazer, você gostou’, de ridicularizar os pedidos de ajuda da mulher.” Segundo ela, o fato de os movimentos sociais terem nomeado como violência obstétrica procedimentos técnicos que eram feitos rotineiramente, como a episiotomia e a manobra de Kristeller, também acelerou o ritmo das mudanças nos modelos de assistência obstétrica.
“Em alguns serviços de São Paulo, fazer atualmente a manobra de Kristeller é motivo de demissão por justa causa. Era uma questão totalmente invisível há dez, 15 anos. Não tinha nem registro em prontuário.”
Para Daphne Rattner, nos últimos anos, a visão de humanização do Ministério da Saúde avançou nas ações de cidadania, como garantia de a gestante ter acesso a seis consultas de pré-natal e direito ao acompanhante, mas ainda há muitos problemas nas relações interpessoais, do profissional de saúde com a gestante.
“A gestão do serviço de saúde é corresponsável por essa violência porque muitas vezes sabe que o profissional a comete, mas não faz nada para impedi-la”, diz a médica.
A adoção de práticas e cuidados não baseados em evidência científica também é outro problema recorrente. “Muitos profissionais de saúde e faculdades de medicina não se atualizaram. Continuam adotando práticas nos corpos das mulheres que já deveriam ter sido banidas”, afirma.
Segundo o estudo da Fiocruz, houve avanços importantes na assistência ao parto pelos médicos. “Não só a enfermagem introduziu boas práticas. Os médicos também aderiram a esse novo modelo de fazer parto. Claro que ainda não é na intensidade que a gente quer”, disse a médica Maria do Carmo Leal, coordenadora do estudo.
A médica epidemiologista Fátima Marinho, consultora da organização de saúde pública Vital Strategies, afirma que os casos de violência obstétrica refletem a negação dos direitos reprodutivos. “A maternidade ainda é vista como dever, obrigação social esperada da mulher.”
Segundo Marinho, é preciso que haja uma mudança na conduta médica a partir do rastreamento de problemas que ainda persistem e resultam na violência. “A impunidade gera as más condutas. Se [os obstetras] souberem que alguém está olhando e vai tomar providências, eles mudam as práticas.”
Em maio do ano passado, uma obstetra de Pelotas (RS) foi agredida a socos e pontapés durante um parto pelo marido de uma gestante, que a acusou de violência obstétrica. Um inquérito policial concluiu que o homem praticou crime de lesão corporal e ameaça contra a médica. Ambos os casos tramitam na Justiça.
Depois do episódio, mais de cem denúncias de violência obstétrica vieram à tona. Segundo a advogada Laura Cardoso, presidente da ONG Nascer Sorrindo, grupo de apoio ao parto humanizado, as mulheres foram orientadas a procurar o Ministério Público Federal, mas nenhuma denúncia acabou prosperando.
Três meses antes desse episódio, o município havia aprovado a Lei do Parto Seguro, articulada pelo movimento de mulheres após a morte da jovem Débora Duarte, de 22 anos, por hemorragia depois de uma cesárea.
Após muita polêmica e pressão da classe médica, a expressão “violência obstétrica” foi retirada do texto da lei. À época, o Simers (sindicato dos médicos do Rio Grande do Sul) disse que o termo “não dava segurança jurídica para o exercício da medicina”.
Não há uma lei federal que tipifique a violência obstétrica, mas certas condutas podem ser enquadradas como crime comum. Por exemplo, episiotomia e manobra de Kristeller podem ser enquadradas como lesão corporal.
Nesses casos, segundo a advogada Laura Cardoso, a mulher deve procurar uma delegacia de polícia e registrar um Boletim de Ocorrência. Na área cível, é possível ingressar com ação de indenização por danos materiais e/ou morais.
Casos de violência obstétrica também podem ser denunciados pelo Disque 136, se o parto ocorreu em maternidade do SUS, ou pelo Disque 180, que recebe todos os tipos de denúncia de violência contra a mulher.
Dados do estudo “A cor da dor”, publicado em 2017, mostram que as negras tendem a sofrer ainda mais violência obstétrica. “Por exemplo, oferta-se menos analgesia de parto como se elas lidassem melhor com a dor, tipo ‘ela é negra, ela aguenta'”, afirma Daphne Rattner.
A pesquisa com maternidades da Rede Cegonha reforça a a existência dessas disparidades raciais, mas mostra que elas foram reduzidas entre 2011 e 2017. Entre as mulheres brancas, a taxa de analgesia durante o parto passou de 10,2% para 26,1%. Entre as pardas, de 6,5% para 17,2% e entre as pretas, de 6,1% para 17,7%.
A oferta de massagem aumentou 6,4 vezes entre as brancas (de 6,8% para 27,4%), sete vezes entre as pardas (de 4,1% para 24,6%) e nove vezes entre as pretas (de 2,6% para 21%).
“Isso não quer dizer que elas [pretas e a pardas] estejam melhores que as brancas, mas que estão mais próximas. Isso é algo que temos que fazer no SUS”, disse a médica Maria do Carmo Leal.
Para Antonio Rodrigues Braga Neto, diretor do departamento de ações programáticas e estratégicas do Ministério da Saúde, embora ainda haja problemas, a pesquisa demonstra que houve claros avanços na assistência ao parto no país após a implantação da Rede Cegonha.
DENUNCIE
Episódios de violência obstétrica podem ser registrados em boletins de ocorrência nas delegacias de polícia.
Também é possível denunciar pelo Disque 136, se o parto ocorreu em maternidade do SUS, ou pelo Disque 180, que recebe todos os tipos de denúncia de violência contra a mulher.
O serviço está disponível 24 horas por dia, incluindo sábados, domingos e feriados.
A ligação é gratuita.
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