No início do mês foram protocolados seis projetos na Câmara Federal para fazer ajustes na tributação, taxar altas rendas e grandes patrimônios, vinculando parte da arrecadação aos programas públicos de atendimento às vítimas da covid-19. Os projetos foram elaborados por integrantes da campanha Tributar os Super-Ricos, formada por mais de 70 entidades de todo o país que prevê arrecadar cerca de R$ 300 bilhões tributando apenas os 0,3% mais ricos da população. O assunto foi tema da live nesta quinta-feira (9).
“Estamos associados a esta grande luta para gerar fontes de financiamento. Vamos precisar da responsabilidade da sociedade frente a maior calamidade da história do Brasil. Já vínhamos com depressão das políticas sociais antes”, destacou a médica sanitarista e presidente da Associação Nacional em Apoio e Defesa dos Direitos das Vítimas da Covid-19 – Vida e Justiça, Lúcia Souto.
A pandemia deixou 600 mil mortos pela covid-19, 130 mil órfãos, 20 milhões de brasileiros contaminados pelo coronavírus, muitos com sequelas físicas e mentais. “As consequências são de uma magnitude ainda difícil de imaginarmos. É preciso dar sustentabilidade às vítimas e familiares com políticas públicas que assegurem a solidariedade, o cuidado e recuperar o bem-estar da população brasileira”, afirmou a representante da entidade que reúne familiares das vítimas da Covid-19.
Os sobreviventes exigem um conjunto de cuidados como fisioterapia, psicoterapia e medicações diversas por tempo indeterminado. Muitos não terão condições de retornar ao trabalho, com grande demanda pela seguridade social. Lúcia Souto observa que em muitos pacientes há impactos nos sistemas cardiovascular, respiratório, renal, neurológico, dermatológico, gastrointestinal, oftalmológico e endócrino.
Alternativas de futuro
“O papel do Congresso Nacional é avançar numa legislação estratégica, fundamental para enfrentar a maior crise sanitária do século. Nós criticamos este genocídio humano de grandes dimensões gerado pelo presidente e seus ministérios, mas oferecemos saídas e propomos futuro”, disse o deputado federal Pedro Uczai (PT/SC), que protocolou os projetos com apoio de 60 parlamentares de quatro partidos, e da Associação Vida e Justiça.
Ao mesmo tempo em que a pandemia aprofundou o desemprego, levando insegurança alimentar a mais de 116 milhões de pessoas, aumentou o número de bilionários, grupo beneficiado pela isenção de impostos e outros favorecimentos que não chegam aos mais pobres. A injustiça fiscal é causa e consequência da profunda desigualdade do Brasil, onde 1% detém 50% de toda a riqueza e 1% mantém 25% de toda a renda.
Teor dos projetos
Para o auditor fiscal e vice-presidente do Instituto Justiça Fiscal (IJF), uma das entidades que coordena a campanha Tributar os Super-Ricos, os projetos constituem um conjunto pequeno de modificações, mas com uma enorme capacidade e potencialidade para reduzir desigualdades. Dão Real Pereira dos Santos explica que a primeira medida é a reforma do IR com critérios progressivos, ampliando o limite de isenção para rendas mais baixas e aumentando as alíquotas das altas rendas.
Revogar a isenção sobre lucros e dividendos distribuídos e a dedutibilidade dos juros do capital próprio (medidas que vigoram desde 1995), são medidas que ampliam a tributação para apenas 0,3% da população e permitem arrecadar R$ 160 bilhões ao ano, explica o auditor. Desonerar as empresas do Simples Nacional, abrangendo 70% das empresas é outra proposta já em tramitação.
Implementar o Imposto Sobre Grandes Fortunas, único tributo, previsto na Constituição de 1988, que ainda não implementado, instituindo alíquotas progressivas de 0,5% a 1,5% apenas para o valor que fique acima de R$ 10 milhões (abrange 60 mil pessoas, representando apenas 0,028% da população), arrecadando cerca de R$ 40 bilhões ao ano.
Fortalecer o financiamento da Seguridade Social, Saúde, Assistência e Previdência, setores mais afetados pela pandemia e que mais demandam do setor público, com a ampliação temporária, por cinco anos, da alíquota da Contribuição Social sobre Lucro Líquido dos bancos e do setor mineral e a criação da Contribuição Social sobre Altas Rendas das pessoas físicas, incidindo somente as parcelas que excederem a uma renda mensal de R$ 65 mil por mês.
Mais recursos para estados e municípios e imposto sobre agrotóxicos
Dão Real detalhou ainda que os Estados e Municípios deverão ser beneficiados pela proposta de nova repartição de receitas apresentada nos projetos. Além dos fundos de participação já existentes, mais 10% do Imposto de Renda e 20% do IGF seriam repartidos, ampliando as receitas dos Estados em R$ 83 bilhões e a dos Municípios em R$ 54 bilhões.
A partir do alinhamento das propostas para tributar os super-ricos com as bandeiras defendidas pela Associação Vida e Justiça, incorporou-se aos projetos a proposta de criação da Contribuição de Intervenção no Domínio Econômico (Cide) sobre a importação e produção de agrotóxicos. .
Além dos projetos de leis, a implementação total das medidas exigirá a aprovação de duas emendas à Constituição, cujas assinaturas para as propostas estão já sendo coletadas.
Senado precisa mudar proposta do IR
Tanto o integrante do IJF como o deputado Uczai reforçaram nas suas falas que as mudanças no Imposto de Renda aprovadas na Câmara, pendentes ainda de análise no Senado são insuficientes para enfrentar os problemas sociais, econômicos e sanitários.
Para o auditor fiscal, o projeto do governo federal que altera regras do Imposto de Renda (PL 2337/21) tende a reduzir a participação do IR na arrecadação total, perda estimada de R$ 30 bilhões no primeiro ano e R$ 50 bilhões no segundo, reduzindo a capacidade do Estado, comprometendo as receitas também dos Estados e Municípios, dificultando o enfrentamento dos efeitos da crise.
“Com esse projeto, o governo se atravessa frente a outros projetos que vêm sendo debatidos desde 2018, com a proposta de reforma tributária solidária e os projetos da campanha Tributar os Super-Ricos. Se apropria da pauta de tributação dos lucros e dividendos e esvazia ainda mais a capacidade da tributação sobre a renda de promover a progressividade do sistema tributário e a redução das desigualdades”, analisa Dão Real.
Na contramão do que está acontecendo pelo mundo, o relatório aprovado na Câmara, ampliou a desoneração do lucro das empresas e das aplicações financeiras, além de ter retirado do texto original todas as medidas ante elisivas, que poderiam significar um avanço em eficiência e isonomia na aplicação da legislação tributária, explica o auditor.
Pacto social civilizatório
“Vamos ter que fazer um grande pacto social e colocar o cidadão no orçamento. Só assim se combate a miséria”, conclama o jornalista Luís Nassif, alertando que o bom mocismo da centro direita são “lágrimas de crocodilo”. Nassif aponta que a sociedade precisa se unir para combater o inimigo comum que é o grande capital insensível à miséria e a desigualdade, setor que influenciou a “entrega de graça do país ao mais criminoso dos militares, que é Jair Bolsonaro”.
O jornalista analisou a conjuntura política e econômica do país e alertou para os enormes desafios de um novo governo progressista que precisará se desvencilhar de inúmeras amarras fiscais para recolocar o país numa trajetória de crescimento com distribuição e que isso só será possível com a inclusão efetiva da população em toda a sua diversidade e na radicalização do Estado social.
Mobilização contínua
Para o diretor-executivo do movimento Vida e Justiça, Renato Simões, a mobilização da sociedade precisa ser contínua. “Esse é o caminho buscado no mundo inteiro. O ajuste fiscal não resistiu à pandemia. São necessárias novas fontes de receita. É o Estado que tem atribuições e capacidade de fazer isso. A injustiça tributária não pode continuar. Esses desafios são ainda mais urgentes porque as demandas sociais estão aumentando.”
Ele informou que além das articulações com os movimentos sociais em todos os estados, nos próximos dois meses ocorrerão debates por meio de lives todas as quintas-feiras, às 19 horas, para divulgar a importância da aprovação desses projetos.
O movimento já tem seccionais constituídas no RS, SC, SP, DF, GO, MT e MG. Em processo de organização, até outubro estão o AC, AM, MA, RJ, PR, SE e MA.