O avanço da variante delta no Brasil criou uma competição biológica com a cepa que predomina no país, a gama (P.1), e levantou um debate entre virologistas, infectologistas e epidemiologista: a ampla disseminação da gama será suficiente para conter a delta? Originária da Índia e predominante em pelo menos 26 países, a variante delta tem ganhado terreno também no Brasil.
De acordo com dados da Gisaid, uma plataforma internacional de dados genômicos, a prevalência da delta entre as amostras depositadas por pesquisadores brasileiros aumenta a cada dia. Em 13 de julho, representava 2,1% das amostras; no dia 15, estava em 5,9%; no dia 16, em 9,8%; e, no dia 17, bateu na casa dos 12%.
Até terça (20), eram 122 casos confirmados no país, segundo o Ministério da Saúde. Rio de Janeiro responde pela maior parte dos casos, com cinco mortes. Um em cada seis casos de Covid-19 sequenciados no estado foi causado pela variante delta. A gama ainda domina, respondendo por 78% das amostras, segundo a Secretaria de Estado de Saúde. No Brasil como um todo, ela responde por quase 90% dos casos.
Para o virologista Maurício Nogueira, professor da Faculdade de Medicina de São José do Rio Preto, apesar de a delta ter um perfil de transmissibilidade alto, o Brasil viveu recentemente uma circulação explosiva da variante P.1, que também se mostrou forte biologicamente e isso poderia causar um bloqueio biológico, somado ao avanço, ainda que lento, da vacinação. “Mas, com as políticas agressivas de abertura no Brasil, estamos criando um caldeirão e não sabemos o que vai sair daí”, diz Nogueira.
O país registra pouco mais de 17% da população com o ciclo vacinal completo, e há uma ampla flexibilização das medidas de distanciamento social.
Julio Croda, infectologista e pesquisador da Fiocruz, diz que eventualmente a gama pode oferecer um bloqueio biológico, mas ninguém sabe de fato o que vai acontecer. “Depende de muitos fatores, como o ritmo da vacinação e a quantidade de pessoas que já adquiriram a gama.”
Adriano Abbud, diretor de respostas rápidas do Instituto Adolfo Lutz, também tem opinião parecida. “É impossível saber ainda se a delta vai se sobrepor à P.1.”
Já o infectologista Esper Kallás, professor da USP, lembra que, onde a variante delta entrou, acabou dominando toda a cadeia de transmissão da Covid. Nos Estados Unidos, ela já é responsável por 83% dos novos casos da infecção, segundo os Centros de Controles para Doenças (CDC, na sigla em inglês). Por quê? Uma hipótese é que ela encontrou espaço fácil para disseminação com a flexibilização das medidas de distanciamento social.
A outra é que ela tenha um poder de transmissibilidade maior do que as demais. Pesquisas indicam que ela apresenta nível de transmissibilidade cerca de 50% maior do que as linhagens anteriores do vírus. E, por fim, pode ser apenas uma substituição aleatória, ou seja, entra e substitui a anterior, como acontece nos vírus da gripe, por exemplo.
“Aqui não deve ser diferente dos outros lugares, porque as barreiras de transmissão são semelhantes a outros locais onde isso aconteceu. O vírus entrou tanto em países com cobertura vacinal alta, como a Inglaterra, quanto onde tem uma baixa, como a Indonésia”, afirma.
Kallás diz que que a delta conseguiu se disseminar em locais onde havia cobertura com todas as vacinas mais conhecidas, como as da Astrazeneca, Pfizer, Moderna e Sinovac, “Tudo isso mostra que, aqui no Brasil, é bem possível que ocorra o mesmo fenômeno.”
As variantes do Sars-Cov-2 estão em permanente disputa e a tendência é prevalecer aquela com maior capacidade de contaminação. Embora nos EUA a delta já domine, o estado de Illinois tem relatado seis vezes mais casos da variante gama do que da delta. Dos mais de 10 mil casos de Covid-19, 2.600 foram causadas pela gama e 403 pela delta, segundo análise da CBS Chicago.
O fato é que, mesmo que haja o predomínio de uma determinada variante, não tem como garantir que uma outra, com maior capacidade de transmissão, não possa se tornar mais prevalente naquela região.
O epidemiologista Paulo Lotufo, professor da USP, cita outro exemplo, o da variante Lambda, detectada pela primeira vez em agosto de 2020 no Peru, mas que passou meses despercebida porque foi confundida com a cepa P.1. “Ela tinha tudo para entrar pela Amazônia e fazer um estrago, mas acabou descendo e pegou norte da Argentina e do Chile e não entrando no Brasil.”
Atualmente, ela está espalhada por 29 países, principalmente na América Latina. No Peru, responde por 90% dos casos de Covid-19. No Chile, por 30% dos registros.
A epidemiologista Ethel Maciel, professora da Ufes (Universidade Federal do Espirito Santo), diz que vê com preocupação o avanço da delta no país, especialmente porque o número de pessoas vacinadas com as duas doses ainda é baixo. Ao mesmo tempo, estudos apontam que só uma dose da vacina, qualquer que seja, não é capaz de oferece uma boa proteção contra a variante.
“Essa escolha que o país fez de ampliar o intervalo da vacina da Pfizer num cenário de descontrole como o nosso, não é um intervalo aprovado pela Anvisa, não é indicado pelo fabricante. O CDC tem muitas reservas, critica porque não há evidências da eficiência acima de seis semanas.”
“Essas pessoas com apenas uma dose vão se infectar mais, as pessoas estão achando que a pandemia está resolvida, as prefeituras estão flexibilizando tudo, não tem testagem em massa. É bem complicado. Estamos colocando todas as fichas na vacina e usando isso de forma descoordenada e desordenada.”
Folhapress